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Comportamento

A importância da rotina, mesmo em tempos de pandemia

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Nestes tempos de recolhimento em casa, você já parou para pensar no quanto era apegado à sua rotina? Nunca ficamos tão perdidos por não termos aquela programação diária de antes da pandemia. De uma hora para a outra, não precisamos mais acordar o filho e apressá-lo para não se atrasar para a escola. Mas temos de cobrá-lo o tempo todo, em casa, para terminar as atividades escolares ou domésticas. Ou seja, agora, com o distanciamento social por causa da pandemia do coronavírus, é o momento em que mais sentimos na prática a importância do esquema anterior.

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Mas por que a rotina é tão importante? Para a pediatra Liubiana Arantes de Araújo, presidente do Departamento Científico de Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), ela cria no cérebro uma capacidade de repetição que faz com que todos consigam realizar as tarefas com mais facilidade e rapidez, e isso economiza tempo e torna o nosso dia a dia mais natural. “Ajuda a criar bons hábitos e a eliminar os maus. Também reduz o estresse e a ansiedade, pois deixa a pessoa mais segura, sem grandes surpresas em relação às suas atividades. Estabelecer rituais, ainda mais na quarentena, é desafiador, mas, por outro lado, é algo que traz um nível de equilíbrio emocional aos pais que vai repercutir diretamente na saúde mental dos filhos”, diz.

Um estudo do Medical College of Georgia, da Augusta University, nos Estados Unidos, mostrou que um programa de atividades artísticas, por exemplo, com regras, rotinas e atividades claras, supervisionado por adultos atentos e com chance de interação com colegas, parece funcionar para melhorar a qualidade de vida, o humor e a autoestima de uma criança com sobrepeso ou obesidade, tanto quanto um programa regular de exercícios. Ou seja, a pesquisa revelou o poder da rotina e do envolvimento das crianças e seus benefícios.

O LADO BOM
Muitas pessoas têm uma visão negativa e encaram a rotina como algo chato. Não precisa ser assim. Entenda-a como uma forma de organização, uma sequência, provavelmente a mais lógica e racional, que visa dar conta de todas as responsabilidades que é preciso cumprir – e não uma situação em que tudo precisa ser cronometrado e rígido.

“As pessoas acabam automatizando as suas vidas, tornando a rotina a dona da sua existência e não têm espaço para a criatividade, para o novo, o inesperado. Assim, ela ganha conotação negativa. O problema é que o ser humano tem uma tendência a comportamentos 8 ou 80. O segredo é achar equilíbrio”, diz Rita Calegari, psicóloga especializada em Psicologia da Família (SP). E isso vale para adultos e crianças.

A cirurgiã plástica Meliza Moutinho da Cruz, 39 anos, sempre detestou rotina, mas, com a chegada dos gêmeos Pedro e Arthur, há quatro anos, entendeu a necessidade de esquematizar melhor o dia a dia, tanto para que ela conseguisse cumprir suas tarefas quanto para que seus filhos ficassem mais tranquilos. “Aprendi que criança gosta de rotina e que faz bem para o aprendizado e desenvolvimento. Além disso, eram dois bebês, eu precisava manter a organização para ter vida! Hoje, eles estão acostumados a horários para comer, ver TV, tomar banho, dormir. Na hora do almoço, por exemplo, Pedro costuma lavar as mãos sozinho e sentar à mesa antes de eu servir a comida, porque já sabe o que vai acontecer naquele momento”, diz.

PODE SER LEVE
Determinar os acontecimentos do dia ou da semana, estabelecer horários e prioridades têm como finalidade melhorar o ritmo da casa, e não torná-lo estressante. Se isso só serve para que você brigue o tempo todo com seu filho porque ele não fez o que devia naquele determinado momento, algo está errado. Esquemas pouco flexíveis tornam as relações e experiências monótonas, repetitivas e pouco participativas. “Se planejo uma rotina intensa e rígida e não cumpro o que planejei, me frustro. Mas, se crio uma mais flexível e equilibrada, com momentos de autocuidado e cuidados com os filhos, de trabalho e lazer, uso essa prática a meu favor”, orienta a doutora em Educação, História, Política e Sociedade Marcia Ferri, gerente de projetos do Instituto Natura (SP).

Um dia a dia gentil pode melhorar a relação de todos na casa. Seus filhos fazem muita birra, estão sempre irritados e qualquer coisa é motivo de choro? Acredite: esse tipo de comportamento pode mudar – e muito! A geógrafa Andreia Assis, 37 anos, sempre sentiu isso em relação aos filhos Miguel, 9 anos, Lucas, 5, e João, 2. “Gosto de ter quadros bem visuais, com a sequência de atividades de cada um, assim eles sabem o que virá a seguir, e eu não preciso ficar repetindo toda hora, o que pode ser cansativo e motivo de brigas”, diz.

É exatamente nessa previsibilidade que está o segredo da importância dos hábitos para as crianças. “Uma rotina bem estruturada possibilita que a criança adquira maior compreensão sobre o que acontece em seu ambiente e sobre as atividades do cotidiano. A consistência as ajuda a ter controle do seu comportamento, diminuindo, assim, as birras, reações agressivas e as discussões dentro de casa”, afirma a psicóloga Karla Cerávolo, da Organização De Umbiguinho a Umbigão (GO).

Porém, de nada adianta ter a segurança da rotina se você e seu filho não souberem lidar com aquelas situações inesperadas que nos fazem quebrar a sequência lógica. Se o cotidiano for tão engessado a ponto de uma festa de aniversário durante a semana ou uma viagem (quer situação mais sem rotina que essa?) se tornarem motivos de ansiedade e mau humor, como seu filho vai aprender que nem sempre temos o controle de tudo e que precisamos ser resilientes?

Olha essa quarentena nos dando uma lição do quanto é essencial ter jogo de cintura para que a vida transcorra bem, mesmo fora do planejado. “Temos de saber lidar com o imprevisto, isso nos faz pensar em saídas criativas. Se sempre seguimos o mesmo esquema, corremos o risco de nos acomodar a ele de forma a não buscarmos melhorias, então precisamos rever, experimentar e nos permitir alguma flexibilização”, afirma a psicóloga Helena Aguiar, da Maternidade Perinatal (RJ).

A seguir, conheça as principais rotinas das crianças, saiba por que elas são tão importantes e como fazer isso dar certo. E mais: o que fazer se a dinâmica da sua família sempre funcionou de um jeito menos estruturado.

Minha família não se adapta a rotinas. E agora?
Calma, cada uma é de um jeito. Não são todas que funcionam bem com quadros de atividades grudados na geladeira. Além disso, não adotar uma agenda rígida também é uma forma de ter uma, desde que apresente começo, meio e fim. “Porém, é importante incluir no dia, mesmo sem frequência diária, atividades que são importantes para o desenvolvimento da criança e saúde mental de todos”, afirma a psicóloga Karla Cerávolo. Se na sua casa as coisas funcionam melhor num ritmo mais fluido, ok. O que não pode é perder compromissos e atrasar para a escola todos os dias, por exemplo.

Sou desorganizado. Meu filho também será?
A criança aprende pelo exemplo, isso é fato. E mesmo que esteja exposta a outros modelos
que podem ser mais organizados, como a escola, a gente sabe que é nos pais que ela se espelha. “Quando nos tornamos pais, perdemos a liberdade de fazer tudo como e quando queremos. É preciso pensar no impacto do nosso comportamento no desenvolvimento das crianças. O mínimo de disciplina é imprescindível. Isso vai ensinar muita coisa a elas”, afirma Karla Cerávolo.

Meu filho já é grande e nunca teve rotina. Existe salvação para ele?
Sim, sempre! Mas precisa de muito amor e paciência. Toda mudança pede um período de transição. Se necessário, procure ajuda profissional, entenda a melhor maneira de fazer isso e envolva o pequeno de maneira respeitosa no processo.

“A criança gosta de se sentir útil. Na maioria das vezes, é o adulto que não deixa que ela participe da tarefa de arrumação, por exemplo, porque vai bagunçar. Mas quanto mais os pais fazem, menos a criança tem vontade de participar. Aí, lá na frente, não adianta reclamar que o filho adolescente não ajuda. Para ser um adulto que coopera, ele precisa ser estimulado desde pequeno”, diz Rita Calegari.

DORMIR… ZZZ ZZZ ZZZ
sono é muito importante para os bebês. Mas não pense que é somente no primeiro ano que você deve se atentar a isso – afinal, sabemos o poder de uma noite reparadora, inclusive em nós mesmos. “Dormir pouco, de forma crônica, pode provocar sonolência diurna, problemas de comportamento (hiperatividade, agressividade, desatenção) e prejuízo no aprendizado, pois diminui a capacidade de realizar as atividades complexas que requerem maior concentração e capacidade de execução. Também influencia no relacionamento com os colegas da escola, irmãos e pais”, alerta o pediatra Gustavo Moreira, pesquisador do Instituto do Sono (SP).

Uma pesquisa australiana publicada na revista médica Acta Paediatrica concluiu que ir para a cama cedo e seguir uma rotina de sono reduz, inclusive, o risco de obesidade infantil. Segundo Gustavo Moreira, é importante, sim, que a criança durma cedo (de preferência, no máximo, às 21h) e que, após escurecer, a quantidade de luz artificial da casa seja reduzida. “Desligue todos os eletrônicos. As telas e lâmpadas emitem uma quantidade de luz azul que inibe a produção da melatonina, o hormônio do sono. Além disso, o conteúdo de celular, tablets e TV são estimulantes”, diz. Nesse momento, você já pode dar início ao ritual do sono, que vai depender da idade e da personalidade da criança, mas, em geral, inclui banho, colocar o pijama, escovar os dentesouvir uma história.

Isso tudo é fundamental para que seu filho realmente tenha um descanso de qualidade. “O sono não é algo que se possa fazer com hora marcada, à força. Ele é re- sultado de um relaxamento. Para isso, precisamos nos deixar levar, e quanto mais conseguimos fazer isso, me- lhor será a noite”, afirma o psiquiatra Leonard Verea, do Instituto Verea (SP).

COMER, COMER!
Quem aí anda com a impressão de que o filho está com um apetite sem fim nesta quarentena, pois não para de pedir coisas para mastigar? Isso pode acontecer porque em casa, muitas vezes, não estabelecemos um horário para o lanche, como acontece na escola. Então, a criança acaba beliscando a toda hora, pois não tem o costume de esperar pela próxima refeição. “Se o lanche da tarde tem horário definido, com o tempo, ela mesma aprenderá a esperar o momento, a perceber e controlar a fome. Quando criamos uma rotina na alimentação infantil, fazemos com que o organismo se adapte, o que corresponde ao famoso ‘relógio biológico’, e assim, isso faz com que o pequeno sinta fome em determinados horários”, explica a nutricionista infantil Veridiane Sirota, especialista em Saúde da Família (PR).

Cabe aos adultos a definição dos horários das refeições e a oferta (se você não compra macarrão instantâneo no mercado, seu filho não vai aprender a comê-lo). A princípio, a base é café da manhã, lanche da manhã (opcional), almoço, lanche da tarde e jantar. Dessas, tente ao menos que uma seja feita em família. A criança precisa de referência para se alimentar: como se come, o que se come, como usar os talheres, como se comportar à mesa. Para isso, a família é o primeiro exemplo. “Por conta do comer junto é que muitas crianças se alimentam melhor na escola: ali, fazem as refeições em grupo e partlham do mesmo alimento e, por observação e socialização, tendem a reproduzir o que os colegas estão fazendo”, diz Veridiane Sirota.

A refeição em família, o exemplo dos pais e a rotina também são fundamentais em casos de seletividade alimentar (quando a criança se recusa a comer) ou quando seu filho cisma que não quer experimentar nada. A exposição frequente e assídua a alimentos saudáveis faz toda a diferença na concordância em experimentar, como comprovou pesquisa publicada no periódico Journal of Nutrition Education and Behavior. Os estudiosos mostraram, após acompanharem 32 famílias, que oferecer repetidamente uma variedade de vegetais às crianças aumenta a aceitação e o consumo desses alimentos. Por isso, não deixe de oferecer, mesmo que, a princípio, seu filho faça cara feia.

ESTUDAR
A criança aprende rotina em casa, sim, mas muito disso também vem do local onde estuda. Afinal, nas instituições de ensino, a organização é um facilitador dos processos de desenvolvimento e aprendizagem dos alunos. “Ao instituir um esquema para os pequenos, a escola torna as experiências mais dinâmicas e contribui para que eles percebam as relações que podem estabelecer com o tempo e com o espaço”, diz Marcia Ferri, do Instituto Natura.

Mas como continuar essa agenda da escola em casa? É fundamental que seu filho, especialmente quando começa a ter lições frequentes, conte com um cantinho de estudo. “Quando for montar esse espaço, pergunte o que ele gostaria que tivesse na mesa, por exemplo. Assim, a criança se sente responsável por manter esse lugar gostoso”, sugere a pedagoga Vera Giusti (SP), diretora pedagógica com especialização em Liderança Educacional pela Michigan State University (Estados Unidos). No mais, perceba em que momento seu filho está mais disposto e estabeleça um horário para fazer as tarefas, como pela manhã, ou assim que voltar da escola. É importante ter esse combinado para que não surja aquele ‘ah, depois eu faço’, e para que ele se acostume com o compromisso.

LAVAR, LIMPAR, ESCOVAR…
Fazer a higiene pessoal é, sem dúvida, uma rotina que foi intensificada com a pandemia, e que reforçou a importância de hábitos como lavar as mãos sempre. Certamente, de tanto reforçar a necessidade dessa atitude, seu filho já está mais acostumado a fazer isso, certo? Persistência é tudo para estabelecer rotinas…

Além desse, outros costumes de higiene devem fazer parte do cotidiano da criança, como tomar banho e escovar os dentes. Porém, muitas vezes, em especial com as mais crescidas, essas tarefas podem não ser assim tão fáceis. Nesse caso, o caminho é recorrer ao lúdico e à conversa. A prática tem de ser prazerosa para a criança, então torne-a divertida. Aposte corrida para ver quem chega ao banheiro primeiro, peça que ela acerte o alvo ao jogar a roupa suja no cesto, disponibilize alguns brinquedos para distrair no banho – ou até mesmo copos de plástico para encher de água ou uma esponja para brincar de lavar o box. Na hora de escovar os dentes, invente uma música, use um creme dental colorido, coloque um pingo dele no seu nariz… Assim, tudo fica muito mais leve!

SIM, BRINCAR!
Esse é o trabalho da criança, já dizia a educadora italiana Maria Montessori, que criou um método pedagógico que leva seu nome. É por meio da brincadeira que a criança aprende, estabelece sua visão de mundo, percebe como se relacionar, testa seus limites. Você pode utilizar o brincar, inclusive, em diversas atividades da rotina diária que a criança considera “chatas”, como na hora de guardar os brinquedos, escovar os dentes ou tomar banho. Mas também é fundamental que ela tenha momentos para brincar, tanto sozinha quanto com os pais, irmãos e amigos (já já será possível!), em brincadeiras dirigidas e também livres.

Infelizmente, muitas crianças acabam com esse tempo de brincar negligenciado por conta de uma agenda extremamente atribulada. “O pequeno precisa brincar para desestressar, colocar o imaginário para funcionar, isso tudo é muito saudável e importante. Mas são tantas atividades e tempo gasto em deslocamentos de uma para outra, que aquele destinado à brincadeira fica restrito”, diz Vera Giusti.

Aproveite o período de quarentena para repensar esse esquema e abra espaço para o brincar na rotina do seu filho – e na sua também!

MEXER O CORPO
Nunca se falou tanto da importância da atividade física desde a infância para garantir saúde. Afinal, os especialistas dizem que o trio alimentação + sono + atividade física é essencial para fortalecer o sistema imunológico. Um estudo da universidade canadense McMaster, feito com mais de 400 crianças entre 3 e 5 anos, mostrou, por exemplo, que a prática de exercícios físicos ainda na primeira infância tem impacto positivo na saúde cardiovascular no futuro.

Nessa faixa etária, o brincar já é uma bela atividade. “Em 15 minutos de brincadeira, ela gasta de 130 a 150 calorias, por isso, deve estar bem alimentada e hidratada”, afirma o professor de Educação Física Hélio Wolff, da Os Incríveis Recreadores (PR).

Se o seu filho pratica algum esporte na escola ou no clube, ótimo, mas e se não faz? Para Hélio, é fundamental abrir espaço na agenda para o exercício, que, muitas vezes, pode ser feito até em família, na brincadeira, independentemente do espaço disponível, como pega-pega, tiro ao alvo com bola de meia, entre outras ideias – dá para brincar de tudo isso, mesmo dentro de casa.

Converse com o pequeno sobre a importância de se movimentar e, se quiser, criem um quadro com sugestões de atividades diárias. “Até o videogame, com jogos que movimentam o corpo, como Just Dance, podem entrar na rotina. Façam essa programação de brincadeiras juntos, sempre priorizando horários em que a criança esteja bem desperta e disposta”, aconselha o professor.

PARTICIPAR DAS TAREFAS DOMÉSTICAS
As crianças podem (e devem!) ajudar nos afazeres da casa e isso precisa ser incluído na rotina delas desde cedo, de acordo com a idade. Elas adoram realizar tarefas junto com os pais, e o vínculo se torna mais forte quando participam de algo de maneira colaborativa e em família.

“Quando o pai elogia o filho que se esforçou, ele fica tão orgulhoso que isso auxilia a valorizar a autoestima da criança, o senso de independência e de ser capaz de fazer”, afirma a diretora pedagógica Vera Giusti. Se a função do pequeno é, por exemplo, tirar o lixo, depois que conclui a tarefa, ele tem a sensação de dever cumprido e pode até ajudar aqueles que não estão dando conta de suas funções – especialmente nesse período de isolamento social. “Isso cria um sentimento de comunidade, de colaboração, que vai ser muito importante para ele no futuro. Este é o momento em que muitos hábitos podem ser incorporados e vão fazer diferença na vida da criança como um todo”, complementa a psicóloga Rita Calegari.

*Revista Crescer